1999, Lawrence, quarenta e cinco anos, é um transexual, mas, em 1989, era um professor universitário, casado com Frederica, Fred, e ainda se identificava como homem, Lawrence Emmanuel James Alia. Lawrence Anyways conduz o percurso da protagonista nos onze anos que separam sua decisão de assumir sua real identidade, e a mulher, já bem resolvida, que concede uma entrevista sobre sua transformação.
O roteiro de Xavier Dolan é oportuno, e, inteligentemente, não linear, apesar de manter alguma linearidade marcada com títulos durante a projeção, e aborda, delicadamente, o tema da identidade de gênero, ilustrando, habilmente, com olhares, os desejos em querer ser, que fomentam a decisão de ser, as diferenças entre sexualidade e identidade de gênero, e questões acerca do amor além das identidades, seja o de mãe, ou o de uma parceira, a hipocrisia de uma classe que, teoricamente, o apoia, ou, pelo menos, deveria apoiar, as perdas e ganhos de uma decisão dessa magnitude, a construção de uma nova persona e novos relacionamentos como uma mulher, e o dia a dia, desde a primeira aparição travestido, com todas as suas idiossincrasias, inclusive a decisão de Fred em acompanhar a sua transformação, preconceitos e violências.
Xavier Dolan transcende a realidade para visualmente retratar, em alguns momentos oportunos, o estado emocional das personagens, vide cena em que Fred abre a correspondência para encontrar o livro de Lawrence, além de proporcionar algumas passagens pungentes, como a explosão de Fred com a garçonete no restaurante, apesar de sua desestabilização em relação ao parceiro. Dolan apenas peca por explorar superficialmente a relação entre a literatura, a formação de Lawrence, e a sua transformação.
A direção de Xavier Dolan é excelente, propiciando cenas memoráveis como a em que Lawrence e Fred chegam a Ilha Negra, entre outras belíssimas tomadas, fazendo hábil uso dos fenômenos da natureza, a neve, o vento, a chuva, que ajudam na contextualização dramática. Suzanne Clément está excelente como Fred, vide, mais uma vez, a forte cena entre sua personagem e a garçonete. Mevil Poupaud não fica atrás, como Lawrence, enfatizando com precisão os conflitos correntes. O resto do elenco é ótimo, destaque para Nathalie Baye, como Julienne Alia, mãe de Lawrence. A fotografia é interessantíssima, também, acentuando as sazonalidades cênicas; os figurinos, igualmente, reclamam a atenção, reparem o belíssimo vestido transparente de Fred; a música evolui conforme os conflitos; e a edição é muito boa.
Um tratado sobre as questões de identidade, tão em voga na atualidade, sem levantar bandeiras ou estandartes, mas, contundentemente, acompanhando a protagonista nos sabores e dissabores de sua decisão. Apesar de longo, vale assistir.
PS: Em cartaz no Festival de Filmes de Quebec, no Estação de Cinema
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